
Este sábado amanheceu com a cara úmida e fria da quarta-feira, dia 30 de maio de 1979. Quando saí de casa, no meio da tarde, rumo à redação da Folha da Tarde, a temperatura já estava desabando. Precavido, havia colocado duas meias, uma camiseta, uma camisa, um blusão de lã e um casaco com capuz. Caía uma chuva miúda, geladinha. As pessoas andavam encolhidas pela rua da Praia. Caminhei da Cel. Vicente, onde morava, até a Caldas Júnior pensando na fria – literalmente – que eu havia entrado.
Eu estava escalado para cobrir Esportivo x Grêmio, no estádio da Montanha, em Bento Gonçalves. Comigo, o fotógrafo Loir Gonçalves. Eu tinha menos de um ano de jornal, e de formado. Nessas horas, a gente costuma brincar na redação: eu devia ter estudado mais e feito medicina, ou algo parecido. Na realidade, repórter que se preze gosta de um programa de índio.
E nós estávamos indo para um programa de índio, sem cocar, carteira da Funai, nem apito. O pessoal da redação só ria da minha cara. O Hiltor Mombach, já um ‘veterano’ de dois anos de redação e companheiro de noitadas, conhecedor da Serra, se criou em Garibaldi, previu: vai nevar. Meu editor, o Nilson Souza, e o editor de esportes, Jair Cunha Filho, me olhavam penalizados.
Cocei minha barba desgrenhada, a La Che Guevara, e rumei para a garagem ao lado do Loir, pensando que se eu trabalhasse na Folha da Manhã ou no Correio do Povo, jornais matutinos, eu não precisaria viajar. Faria o jogo pelo rádio. Na Folha, a gente acompanhava todos os jogos da dupla no Interior ao vivo. A matéria era escrita numa Olivetti, em laudas, na redação deserta, e deixada na mesa do editor, que chegaria de manhã cedo.
A viagem já foi dura. Não me lembro se de Kombi, de Brasília ou de Fuca. Era o que havia na pré-história. Quando chegamos em Bento a temperatura estava próxima do zero grau. E caindo, caindo. Chegou a hora do jogo.
Os jogadores entraram em campo. Fiquei com pena deles. O gramado úmido, a temperatura no zero grau e um vento cortante como uma navalha, parecia que atravessava a alma. Pouca gente no estádio. Noite boa para ficar em casa, tomar um caldo quente com vinho tinto. Meus pés estavam congelados, quase não os sentia. Os dedos da mão viraram picolé.
O jogo começou morno na noite gelada. Ninguém queria nada com nada. Prenúncio de 0 a 0, que acabou sendo o resultado final.
O vento estancou de repente. Parecia que o tempo havia parado. Em campo, os jogadores corriam muito mais para se aquecer do que para jogar bola. De repente, começaram a cair flocos de neve, que foram aumentando de intensidade rapidamente. O campo ganhou uma camada fina de neve. Pensei no pessoal na redação aquecida, na previsão do Hiltor. Pensei num café bem quente, num cobertor de lã, num garrafão de vinho, uma canja de capeletti.
O Jesum, um ponta habilidoso e rápido, passou perto de mim. Seu enorme bigode estava branco. Mais adiante, o carioca Paulo César Caju com sua cabeleira coberta de neve. Na área, o Baltazar pedia a bola, braços erguidos. Parecia que haviam congelados no ar.
No intervalo, eu e o Lupi Martins, grande parceiro e excelente repórter da Rádio Guaíba, paramos para tirar uma foto e registrar aquele momento mágico. Um colega de outra emissora, lá de Bento, entrou de gaiato.
Eu estava congelado. Um boneco de neve. De barba, mas um boneco de neve.
Nos acréscimos
O Rogério Aguiar, que escreve a coluna sobre clima e tempo na Correio do Povo, registrou esse momento histórico - conhecido como o Jogo da Neve - na edição de domingo passado, inclusive com uma declaração minha e citando trecho da matéria que escrevi na ocasião, já na madrugada de 31 de maio.
Ah, o Lupi, que faleceu ano passado, é o da direita, de capuz e casaco escuro. Eu estava com os equipamentos de transmissão da rádio porque o Lupi havia se afastado campo por alguns momentos.